Imprimir acórdão
Processo n.º 659/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Veio a recorrente A. reclamar para a conferência da decisão sumária, proferida nestes autos, de não conhecimento do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade por si interposto, pedindo, a final, seja admitido o recurso ou, caso assim se não entenda, proferido despacho que a convide a esclarecer/complementar o respectivo requerimento de interposição com os fundamentos das inconstitucionalidades que invoca.
Alega, em síntese, para tanto, que o recurso para este Tribunal Constitucional está em condições processuais de prosseguir para apreciação (de mérito) das questões de inconstitucionalidade que constituem o seu objecto, porquanto, contrariamente ao sumariamente decidido, suscitou-as de forma processualmente adequada perante o Tribunal recorrido ao invocar expressamente na reclamação perante este apresentada, entendida como um todo, os fundamentos das inconstitucionalidades suscitadas que a decisão reclamanda diz faltar, sendo que, ainda que assim se não entenda, sempre seria de aplicar, ainda que por analogia, os artigos 685º-A, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), e 75º-A, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), viabilizando-se, desse modo, o suprimento de tal invocada omissão.
O Ministério Público, em resposta, pugna pelo indeferimento da reclamação, com fundamento na inidoneidade da forma de suscitação da questão de inconstitucionalidade que se baste com a invocação conclusiva e não minimamente fundada da sua invocação, o que, entende, se verifica no caso concreto, como considerou o órgão decisor a quem compete, em primeira linha, aferir da idoneidade da forma de suscitação concretamente adoptada pela parte.
2. Cumpre apreciar e decidir.
Entendeu a decisão sumária, objecto da presente reclamação, em síntese, que a recorrente não observou o ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade que constitui o objecto do recurso porquanto, apesar de a ter suscitado em momento prévio à prolação da decisão de que recorre, não o fez de modo processualmente adequado a gerar, no tribunal recorrido, a obrigação de dela conhecer, pois que não consubstanciou minimamente, como se lhe impunha, as razões porque entendia que os preceitos normativos invocados violavam, em dada dimensão ou interpretação normativa, cada um dos preceitos e princípios que integram o diverso complexo normativo constitucional alegadamente violado, como considerou, aliás, o próprio tribunal recorrido.
Fundamentou-se o decidido, por um lado, no facto de a recorrente ter tratado a questão de inconstitucionalidade na reclamação que apresentou perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em item autónomo intitulado «Das inconstitucionalidades», do seguinte modo:
«São inconstitucionais a alínea f) do nº 1 do art. 400.º e a alínea b) do nº 1 do art. 432.º, ambos do CPP, interpretadas no sentido da não admissão do recurso do Acórdão da Relação para o STJ interposto por Arguido que nele foi condenado a pena de prisão inferior a oito anos, quando na mesma decisão foram condenados outros Arguidos em penas de prisão superiores a oito anos, que dele também recorreram e cujos recursos foram admitidos.
Com efeito, por essa interpretação são violados os arts. 9º-b, 12º, 13º, 18.º, 20.º (nº 1 e 2), 32.º (nº 1 a 3) todos da CRP, bem como o princípio da proporcionalidade.».
Considerou-se, por outro lado, na decisão reclamanda, que «na ponderação da aptidão funcional de dada forma de suscitação da questão de inconstitucional para gerar a correspondente obrigação processual de pronúncia, por parte do tribunal recorrido, não é possível olvidar, de outros indícios ou factores, o modo como este, confrontado com a mesma, a visualizou e apreendeu», sendo que, no caso vertente, foi o próprio Tribunal recorrido quem acertadamente justificou a não pronúncia sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada com a inexistência, no caso, da correspondente obrigação processual, com a seguinte argumentação:
«A reclamante suscita a inconstitucionalidade das normas do artigo 400.º, nº 1, alínea f) e 432.º, nº 1, alínea b) do CPP, por violação ‘dos artigos 9.º-b, 12.º, 13.º, 18.º, 20.º (nº 1 e 2), 32.º (nº 1 a 3) todos da CRP, bem como do princípio da proporcionalidade’.
Limita-se, porém, a enumerar um conjunto alargado de normas constitucionais e um princípio geral estruturante, em bloco, sem invocar qualquer fundamento ou justificação da arguição de inconstitucionalidade com ligação valorativa às normas infra-constitucionais referidas.
Semelhante alegação, sem a invocação de qualquer mínimo fundamento, não permite, consequentemente, decidir sobre o bem ou mal fundado da arguição. Não pode, com efeito, ser apreciada a inconstitucionalidade alegada por conjunto, em bloco, sem que a reclamante ofereça princípio de fundamentação ou razão relativamente a cada norma ou princípio invocado.
Não vem, assim, utilizado um modo processualmente prestável que permita uma decisão.».
Embora reconheça que, no excerto acima transcrito, omitiu as razões das alegadas inconstitucionalidades, invoca agora a recorrente, como fundamento da reclamação, o facto de as ter enunciado ao longo da peça processual (reclamação) que apresentou perante o órgão decisor (Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça), sendo que, sustenta, «essa parte epigrafada ‘Das Inconstitucionalidades’ integra-se em todo o Requerimento, faz parte dele, pelo que não pode ser entendido estanque e isolado do teor de todo o documento».
Vejamos se lhe assiste razão.
Sustenta a reclamante que invocou relevantemente as razões de inconstitucionalidade, que a decisão recorrida e a decisão sumária reclamanda julgaram em falta, nas seguintes passagens da reclamação deduzida perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça:
«Conforme se conclui do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, a contrario, é admissível recurso dos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão superior a 8 anos.»
«Como se disse, o Acórdão que condenou a Reclamante em 1ª instância é o mesmo que condenou os quatro Arguidos atrás identificados, assim como o Acórdão do Tribunal da Relação que decidiu os Recursos por ele interpostos é também o mesmo.»
«Conclui-se, assim, que o despacho reclamado – que decide admitir dois Recursos e não admitir outros dois, consoante os Arguidos tenham ou não sido condenados em pena de prisão superior a oito anos – interpreta aquele preceito legal pondo a tónica nos Arguidos e não no Acórdão.»
«Com o devido respeito, não nos parece que essa seja a boa interpretação da lei: Desde logo porque a sua letra não vai nesse sentido – a lei estipula que são recorríveis os Acórdãos, não diz que podem recorrer os Arguidos que tenham sofrido a pena X ou Y; Depois porque todo o substractum capaz de suportar a ratio da justiça que subjaz à criação da lei tem que assentar naquilo que é substancial – e nenhuma dúvida pode haver de que, num caso como o dos autos em que um Acórdão é emitido sobre a condenação de vários Arguidos, o relevante é a gravidade e complexidade dos factos e do Processo e não pode ser a consideração das penas em que nele são condenados cada um dos Arguidos. Tendo esse Acórdão condenado em pena de prisão superior a oito anos, ele é recorrível – e é-o por todos e cada um dos Arguidos, já que a decisão é, embora múltipla nas condenações, una na sua génese e fundamentação.»
«Também porque, no caso dos autos – como em todos aqueles em que há vários arguidos e diversas condenações – a simplista tese acolhida pelo despacho reclamando acabaria por, ao fim e ao cabo, consagrar em termos de recursos um regime mais favorável para os Arguidos condenados em penas superiores do que os que o foram em penas menores.»
«Ao regular a admissão dos Recursos o que a lei tem em vista é a complexidade, a gravidade, do Processo e da decisão – como se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 645/2009, de 15.Dez.2009, acolhendo o referido no Ac. TC nº 640/2004 em apreciação da (não) inconstitucionalidade da então alínea f) do art. 400º do CPP, ‘não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada’ (à pena que foi aplicada – tendo em conta a nova redacção da lei actual).»
«Ou seja, é o próprio Tribunal Constitucional que fundamenta a reserva da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos mais graves. E dúvida não pode haver de que um Processo como o que está em causa – com vários Arguidos, todos os que foram condenados foram-no em co-autoria, dos quais uns foram condenados em penas superiores a 8 anos e outros em penas inferiores, alguns mesmo absolvidos – é um Processo com casos graves, para além da sua complexidade.»
«Pelo que entendemos dever ser a essa gravidade e complexidade que há-de conferir-se o motivo que leva a lei a regular a admissão, ou não, dos graus de Recurso. E não seria – entendemos nós – de admitir que em matéria de direito ao recurso a lei pretendesse conferir mais direitos aos condenados, na mesma decisão, em penas superiores face aos condenados com penas inferiores. Seria uma clara violação da regra da proporcionalidade (ainda por cima em benefício de quem mais prevaricou) e da igualdade perante a lei.»
«Acresce que, como se disse já, a Reclamante foi condenada em regime de co-autoria. Ora, face à admissão de dois dos Recursos para o STJ – tendo obviamente em conta que os recursos interpostos também lhe aproveitam a ela (vide al. a) do nº 2 do artigo 402º do CPP) – da sua apreciação podem resultar consequências para ela. Também daqui resulta, a nosso ver claramente, a incorrecção da interpretação conferida à lei pelo douto despacho reclamado – num Processo com a gravidade e complexidade deste, não faz sentido não admitir o Recurso da aqui Reclamante. Só uma errada e simplista interpretação da lei é que isso permitiria.».
Não se descortina, contudo, na passagem acima transcrita, a clara invocação, também ao nível das razões que a sustentam, da questão de inconstitucionalidade para cuja apreciação de mérito apela a reclamante.
Com efeito, em tal passagem da reclamação, limita-se a recorrente a pugnar pelo mal fundado da interpretação alegadamente acolhida pelo despacho de que reclamou junto do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sendo que a invocação, em tal contexto argumentativo, de uma interpretação conforme à Constituição não é forma procedimentalmente correcta de suscitar a inconstitucionalidade de interpretação contrária.
Por isso, apreciando a argumentação a propósito desenvolvida pela ora reclamante, limitou-se o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a afastar, no essencial, o entendimento nela invocado, sublinhando que «a faculdade de recorrer pertence (…) ao estatuto do arguido, concretizada nas condições objectivas de recorribilidade e subjectivas de legitimidade fixadas na lei» e que «a concretização processual de direitos e faculdades pertencentes ao estatuto de cada arguido é individual e independente da concretização dos direitos e faculdades dos restantes arguidos em caso de pluralidade de arguidos no processo imposta pelas regras materiais sobre as formas do crime ou pelas regras processuais da conexão».
Por outro lado, se é certo que as peças processuais, sejam elas quais forem, devem ser unitariamente interpretadas, a verdade é que, nos casos em que, como o vertente, é o respectivo autor quem desde logo destaca dada questão de inconstitucionalidade, autonomizando-a dos restantes fundamentos da pretensão, é-lhe exigível que concentre, em tal capítulo alegatório, o essencial dos fundamentos da inconstitucionalidade suscitada, aí enunciando não apenas os preceitos normativos violadores e as normas e princípios constitucionais violados mas o essencial das razões da alegada desconformidade, sobretudo quando aí se enumeram, como parâmetros constitucionais violados, «um conjunto alargado de normas constitucionais e um princípio geral estruturante, em bloco», como também é o caso, pois que, sem elas, não é exigível ao Tribunal recorrido, nesse contexto argumentativo, descortinar qual o «fundamento ou justificação da arguição de inconstitucionalidade com ligação valorativa às [diferentes] normas infra-constitucionais referidas» e, com base em tal juízo conjectural, decidir.
Por tais razões, e como sublinhado na decisão sumária em reclamação, não se afigura que tenha havido, por parte do Tribunal recorrido, «nem uma leitura maximalista das exigências que, em matéria de suscitação da questão de inconstitucionalidade, decorrem da lei, nem uma interpretação minimalista do que seja o seja o sentido decisivo do dever judicial de pronúncia», mostrando-se fundada, por não devida, a não pronúncia quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada pela ora reclamante.
Sustenta ainda a reclamante, como fundamento da reclamação, que deveria, pelo menos, ter sido «convidada a esclarecer/complementar os fundamentos das inconstitucionalidades que invoca», o que ora requer a título subsidiário, por aplicação analógica do disposto nos artigos 685º-A, n.º 3, do CPC, e 75º-A, n.º 5, da LTC.
Mas parte de um equívoco que cumpre esclarecer.
Os invocados preceitos legais e o princípio pro actione que os mesmos pretendem salvaguardar apenas operam como forma de superação de omissões ou deficiências formais do requerimento de interposição de recurso; estando em causa, como é o caso, a não verificação de pressupostos processuais de que depende o conhecimento de mérito, no caso decorrente da inobservância do ónus de suscitação processualmente adequada de questão de inconstitucionalidade normativa – que não é claramente uma omissão ou deficiência daquela natureza – não é aplicável, ainda que por analogia, o que dispõem tais normativos legais.
É que, além do mais, o que um tal ónus pretende garantir é a própria natureza recursiva da fiscalização concreta da constitucionalidade, apenas permitindo a intervenção fiscalizadora do Tribunal Constitucional em sede de reapreciação do juízo de inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade que o Tribunal recorrido tenha feito ou devesse ter feito das normas legais invocadas na resolução do caso concreto que lhe compete decidir.
Ora, o invocado suprimento, por carecido de efeito retroactivo, não teria, como é evidente, a virtualidade de gerar no Tribunal recorrido a obrigação processual de conhecer a questão de inconstitucionalidade que integra o objecto do presente recurso, sendo que esse é um pressuposto insuprível do seu conhecimento de mérito (artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da LTC).
A presente reclamação não pode, pois, por tais razões, ser atendida.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando-se, em consequência, a decisão sumária proferida nos presentes autos.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.