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Processo n.º 430/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Lousada, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso de constitucionalidade, da sentença daquele Tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 6.º, n.º 1, alínea o), do Código das Custas Judiciais (CCJ, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro).
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1º
É inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20º, em conjugação com o artigo 18º, ambos da Lei Fundamental, a norma constante do artigo 6º, nº 1, alínea o), do Código das Custas Judiciais, na parte em que tributa a impugnação judicial da decisão administrativa sobre a concessão do apoio judiciário, em função do valor da causa principal.
2º
Na verdade, tal critério de fixação do valor tributário do recurso – coligando-o, não ao montante das custas em controvérsia, mas ao valor dos interesses litigados na causa principal – é susceptível de constituir factor de inibição ao exercício do direito ao recurso, por parte de quem se considera economicamente carenciado, atento o desproporcionado valor que as custas do dito recurso podem envolver, quando a causa principal seja de elevado valor.
3º
Pelo que, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.»
3. O recorrido não contra-alegou.
4. Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para a presente decisão:
- B. requereu contra A. inventário para partilha de bens, por apenso aos autos de divórcio, decretado entre a requerente e a requerida;
- No decurso do referido inventário, A. requereu apoio judiciário;
- Na sequência do indeferimento do pedido de apoio judiciário, interpôs recurso de impugnação dessa decisão do Instituto da Segurança Social, o qual não teve provimento, tendo sido condenado nas custas respectivas;
- Foi elaborada conta de custas, da qual resultou que o referido A. é responsável pelo pagamento da quantia total de € 1683,00, sendo €561 referentes a metade da taxa devida pelo processo (de divórcio e subsequente inventário) e € 1122 referentes à taxa devida pelo recurso judicial apresentado por A. contra a decisão administrativa de indeferimento do pedido de apoio judiciário;
- Na sequência de reclamação da conta de custas, apresentada por A., o Tribunal Judicial de Lousada decidiu ordenar a reformulação da conta, fundamentando a sua decisão, além do mais, na recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da norma da alínea o) do n.º 1 do artigo 6.º do CCJ.
- É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
5. O artigo 6.º, n.º 1, alínea o), do Código das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, alterado, nesta parte, pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro), sob a epígrafe “Regras especiais”, estabelecia o seguinte:
«1 - Nos casos a seguir enunciados considera-se como valor, para efeito de custas:
(…)
o) Na impugnação judicial de decisão sobre a concessão de apoio judiciário, o da respectiva acção ou, subsidiariamente, o resultante da alínea a);
(…)».
Por seu turno, a alínea a) do citado artigo 6.º previa:
«a) Nos processos sobre o estado das pessoas e nos processos sobre interesses imateriais, o fixado pelo juiz, tendo em atenção a repercussão económica da acção para o responsável pelas custas ou, subsidiariamente, a situação económica deste, com o limite mínimo da alçada do tribunal de 1.ª instância».
A decisão recorrida começou por afirmar que o valor a considerar para a impugnação judicial da decisão sobre a concessão de apoio judiciário era, no caso, o valor da causa, ou seja, do processo de inventário, nos termos da primeira parte da alínea o) do n.º 1 do artigo 6.º do CCJ, não lhe sendo aplicável a remissão para a alínea a) do mesmo preceito legal, por não estar em causa a instauração de uma das acções ali previstas, mas sim um processo de inventário subsequente a divórcio.
Citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, a decisão recorrida recusou a aplicação desta norma, por inconstitucionalidade, com três fundamentos: i) violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição), por «discriminar injustificadamente o recorrente em matéria de apoio judiciário, relativamente a todos os demais que litiguem em defesa de um interesse económico equivalente, invocando qualquer outro direito»; ii) violação do princípio da proporcionalidade, enquanto emanação do princípio da universalidade (previsto no artigo 12.º da Constituição), na medida em que a solução legislativa conduz a um resultado aberrante do ponto de vista do custo (versus benefício) do acesso à justiça para o recorrente em matéria de apoio judiciário; iii) violação do acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), na medida em que é susceptível de inibir o recurso a juízo para impugnar a decisão administrativa sobre o pedido de apoio judiciário.
O recorrente Ministério Público pugnou igualmente pela inconstitucionalidade da norma em causa, por violação do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o artigo 18.º, ambos da Lei Fundamental, na medida em que o valor tributário atribuído ao recurso da decisão administrativa que decide o apoio judiciário pode atingir montantes desproporcionados (quando a causa principal seja de valor elevado), o que constitui um factor inibitório ao exercício do direito de impugnação da decisão negativa da Segurança Social. Mais conclui que «não se vê razão suficiente para atribuir a este recurso o valor tributário da causa principal, dado que a utilidade económica do pedido formulado nesse recurso liga-se, não ao valor dos interesses materialmente controvertidos na causa principal, mas ao montante de custas que poderão ser exigidas ao requerente, se decair na impugnação que deduz.»
6. A norma questionada prevê que aquele que impugna judicialmente a decisão administrativa de indeferimento do pedido de apoio judiciário será responsável, em caso de improcedência da impugnação, pelo pagamento de uma taxa de justiça que terá por referência o valor da acção no âmbito da qual (ou para a qual) foi pedido o apoio judiciário.
A redacção da norma resulta da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003 ao CCJ, tendo este normativo substituído a versão original daquela alínea o), que se reportava ao valor tributário do incidente de apoio judiciário. A alteração foi feita na sequência das modificações introduzidas no procedimento de apoio judiciário, que passou a ser de natureza administrativa, sendo a sua decisão da competência dos serviços da Segurança Social, enquanto que, à data da aprovação do CCJ, o pedido de apoio judiciário era deduzido no tribunal da causa (a instaurar ou já instaurada) e por este decidida, sendo processado como um incidente processual.
A versão originária da referida alínea o) foi apreciada no Acórdão n.º 404/2007, desta 2.ª Secção, que decidiu não julgar inconstitucional a norma da alínea o) do n.º 1 do artigo 6.º do CCJ, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na versão originária (do Decreto-Lei n.º 224-A/96), que considerava como valor tributário do incidente de apoio judiciário o da respectiva causa principal.
Era substancialmente diverso o quadro normativo sobre o qual se pronunciou tal aresto. Na verdade, sendo o pedido de apoio judiciário processado como um incidente da acção respectiva, apesar de o valor desta fornecer a referência de base, a taxa de justiça era reduzida a um quarto ou a um oitavo, quando não houvesse ou não fosse admissível oposição, e podendo o juiz, justificadamente, reduzi-la até metade de 1 UC (respectivamente, artigo 15.º, n.º 1, alínea o), e n.º 2, do CCJ, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 324/2003). Neste quadro legal, entendeu-se, no Acórdão n.º 404/2007, que a norma então em apreço não afrontava o artigo 20.º da Lei Fundamental, nomeadamente, porque traduzia a regra ou princípio geral de determinação do valor dos incidentes processuais, e, além do mais, incluía a possibilidade legal de redução da taxa de justiça até metade de 1 UC.
Não pode, assim, transpor-se para o presente caso os fundamentos que sustentaram o Acórdão n.º 404/2007.
A exacta norma aqui em causa, na redacção do Decreto-Lei n.º 324/2003, foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 255/2007 e 299/2007, respectivamente da 3.ª e da 1.ª Secções deste Tribunal, que julgaram inconstitucional a norma contida na alínea o) do n.º 1 do artigo 6.º do CCJ, na parte em que tributa em função do valor da causa principal a impugnação judicial de decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário, por violação do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o artigo 18.º, da Constituição.
Os fundamentos do Acórdão n.º 255/2007 (secundado pelo Acórdão n.º 299/2007), podem sumariar-se da seguinte forma:
«I - No domínio do actual Código e do actual processamento da impugnação das deliberações proferidas pelos serviços de Segurança Social desfavoráveis aos peticionantes, a taxa de justiça devida em caso de improvimento é, pelo menos, duas vezes, superior ao máximo possível nos casos de indeferimento dos pedidos anteriores da então designada assistência judiciária; existe, pois, quanto às situações de improvimento judicial da impugnação das deliberações dos serviços de Segurança Social, tal como agora se encontram reguladas, um acentuado agravamento do montante da taxa de justiça comparativamente com os casos de indeferimento dos pedidos de assistência judiciária, conquanto numas e noutros o referente da taxa fosse sempre o do valor da acção instaurada ou a instaurar.
II - A norma em análise - que vai redundar num agravamento do montante das custas em, pelo menos, o dobro do limite máximo que anteriormente se consagrava - é conflituante com o direito consagrado no n.º 1 - e, mais propriamente, com a sua parte final - do artigo 20.º do diploma básico, além de se patentear como manifestamente desproporcionada e excessiva tocantemente ao benefício económico pretendido alcançar, justamente o da dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo.»
Também no caso presente é notória a desproporção do montante das custas devidas pelo recurso judicial da decisão administrativa de indeferimento do apoio judiciário. Neste caso, tanto ao recurso judicial da decisão administrativa como à acção respectiva (processo de inventário) foi atribuído o mesmo valor tributário de €26920 e sendo o impugnante responsável pelo pagamento da totalidade da taxa aplicável (enquanto que no processo principal a sua responsabilidade se cingia a 50%), o valor de taxa de justiça respeitante ao recurso acaba por ser o dobro do valor da taxa de justiça devida na acção respectiva.
Ou seja, porque requereu apoio judiciário e este foi administrativamente indeferido e porque impugnou judicialmente esta decisão de indeferimento, sem lograr obter provimento, o interessado passa a estar onerado com o pagamento da taxa de justiça dessa impugnação em montante equivalente ao dobro – ou, no mínimo, em montante igual – à taxa de justiça que tem que suportar no processo no âmbito do qual requereu tal apoio judiciário.
É, por isso, notório o agravamento do montante da taxa de justiça nas situações de improcedência judicial da impugnação das decisões sobre a concessão do apoio judiciário, comparativamente com aquele que era devido no regime anterior, no qual, embora o referente da taxa fosse sempre o do valor da acção instaurada ou a instaurar, o seu montante máximo não podia exceder um quarto da taxa respectiva.
Ora, como se conclui no citado Acórdão n.º 255/2007, não se «vislumbram razões conexionadas com direitos ou interesses constitucionalmente protegidos para o acréscimo hoje surpreendido». Se é certo que o instituto do apoio judiciário não deve ser encarado como um instrumento generalizado ou um pressuposto primário de acesso ao direito, mas sim como «uma solução a utilizar, de forma excepcional, apenas pelos cidadãos economicamente carenciados ou desfavorecidos», tal não deixa de implicar «necessariamente, que também o sistema das custas judiciais tenha de ser um sistema proporcional e justo que não torne insuportável ou inacessível para a generalidade das pessoas o acesso aos tribunais» (Acórdão n.º 495/96, citado no Acórdão n.º 255/2007).
Como bem salienta o Ministério Pública nas suas alegações, a atribuição à impugnação judicial da decisão sobre a concessão do apoio judiciário de um valor de taxa de justiça idêntico ao dos interesses controvertidos na causa principal constitui um verdadeiro factor inibidor do exercício do direito a impugnar judicialmente essa decisão administrativa.
Como se salientou no Acórdão n.º 420/2010 (que julgou inconstitucionais, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, as normas dos artigos 6.º, n.º 1, alínea o), 14.º, n.º 1, alínea a), 23.º, n.º 1, 24.º, n.º 1, alínea c), 28.º e 29.º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, quando interpretadas no sentido de que a impugnação judicial da decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário não está dispensada do pagamento prévio da taxa de justiça inicial, calculada com referência ao valor da causa principal, e determinando a omissão do pagamento o desentranhamento da alegação apresentada e a preclusão da apreciação jurisdicional da impugnação deduzida), «o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, pressupõe, desde logo, que tal acesso não seja dificultado em função da condição económica das pessoas, o que necessariamente sucede quando a lei constrange o particular a acatar a decisão administrativa proferida a propósito dessa mesma condição económica, unicamente porque não tem meios económicos para obter a sua reapreciação judicial.»
A desproporção do agravamento da taxa de justiça devida nos processos de impugnação judicial das decisões sobre a concessão de apoio judiciário foi, aliás, reconhecida pelo próprio legislador que no posteriormente aprovado Regulamento das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, que veio revogar o Código das Custas Judiciais), incluiu tais processos entre os “casos especiais” de fixação da base tributável (artigo 12.º, n.º 1, alínea a), do citado Regulamento). Agora, considera-se para este efeito o valor de dois mil euros, cuja taxa de justiça devida corresponde, em regra, a metade de uma unidade de conta, nos termos do previsto na linha 1 da Tabela I-B, anexa ao Decreto-Lei n.º 34/2008, para a qual remete o seu artigo 12.º (neste sentido cfr. Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais, Anotado e Comentado, Coimbra, 2009, 222).
Pelo exposto, conclui-se que a norma em apreço é desconforme com o artigo 20.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, da Constituição.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição, a norma do artigo 6.º, n.º 1, alínea o), do Código das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro);
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.