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Processo n.º 363/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente Ministério Público e recorridos A. e B., foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores, adiante designada LTC), para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 145.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.
2. Notificado o representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional para esclarecer o objecto do recurso, veio dizer o seguinte:
«1º
Estando o Ministério Público isento do pagamento de multa a que se refere o n.º 5 do artigo 145.º do Código do Processo Civil, essa isenção é substituída por uma declaração, sendo esse o sentido de jurisprudência constitucional -e não só - sobre tal matéria.
2º
Sendo inconstitucional exigir ao Ministério Público que emita uma declaração manifestando intenção de interpor recurso nos três dias subsequentes ao termo do prazo, antes de esgotar tal prazo (Acórdão n.º 538/2007), essa declaração deverá ser apresentada quando da interposição do recurso, naqueles três dias subsequentes.
3º
Ora, o que o Ministério Público sustenta é que não sendo essa declaração apresentada no montante próprio e equivalendo a apresentação ao pagamento da multa, deve ser aplicado regime do n.º 6 do artigo 145.º do CPC, ou seja, deve ser o Ministério Público notificado para a apresentar, como o seria outra parte para pagar a multa.
4º
O Ministério Público, nas instâncias, sustentou que uma interpretação daquele n.º 6 do artigo 145.º no sentido de não impor ou sequer permitir a notificação referida, era inconstitucional, por violação ao disposto nos artigos 2.º, 20.º, n.º 4 e 219, n.º 1, todos da Constituição.
5º
A Relação do Porto entendeu que essas notificações não têm que ser feitas, na fase processual em que os autos se encontravam.
6º
Efectivamente, segundo a Relação, o momento e a fase processual própria para cumprir o n.º 6 do artigo 145.º do CPC é no tribunal competente para a admissão do recurso - no caso a 1.ª Instância - , pois do cumprimento desses ónus dependerá a admissão, ou não, do recurso.
7º
Ora, a situação que se verifica nos autos tem especificidades que a afastam daquela “regra geral” e de jurisprudência do Tribunal Constitucional que vem citada.
8º
Na verdade, na fase considerada a própria, não faria sentido dar cumprimento ao n.º 6 do artigo 145.º do CPC em relação ao Ministério Público ou a qualquer outro recorrente, uma vez que o recurso foi admitido por se ter considerado ocorrer justo impedimento.
9º
A questão de necessidade de declaração, de saber qual o momento próprio para a sua apresentação e da eventual possibilidade de suprir algumas deficiências, apenas se colocou na Relação e na sequência de se ter entendido que não havia lugar a justo impedimento.
10º
Assim, conjugando o teor do requerimento de interposição do recurso e afirmado pelo Ministério Público na reclamação para a conferência com as decisões proferidas na Relação, deverá constituir objecto do presente recurso a questão da inconstitucionalidade de norma do n.º 6 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, tendo o recurso sido admitido no tribunal de 1.ª instância, exclusivamente com fundamento na existência de justo impedimento e concluindo a Relação pela inexistência desse justo impedimento, o Ministério Público já não pode ser notificado para apresentar a declaração devida pela interposição de recurso nos três dias subsequentes ao termo do prazo.
11º
Tal interpretação é violadora dos artigos 2.º, 20.º, n.º 4 e 219.º, n.º 1, da Constituição.»
3. O recorrente Ministério Público apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. O presente recurso foi interposto, pelo Ministério Público, “ao abrigo do disposto nos arts. 280º nºs 1 al. b) e 4 da CRP e 70º nº 1 al. b)” da LOFTC, “com vista à apreciação da inconstitucionalidade do citado art. 145º nº 6 do CPC na interpretação que lhe foi dada no referido acórdão” (fls. 1449).
2. Vem impugnado o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2009/12/16, proferido nos autos n.º 230/07.4JAPRT.P1, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e outro (fls. 4120-1433) e do Acórdão complementar de aclaração, datado de 2010/02/24 (fls. 1443-1444).
3. Segundo este Ministério Público, “deverá constituir objecto do presente recurso a questão da inconstitucionalidade de norma do nº 6 do artigo 145º do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual, tendo o recurso sido admitido no tribunal de 1.ª instância, exclusivamente com fundamento na existência de justo impedimento e concluindo a Relação pela inexistência desse justo impedimento, o Ministério Público já não pode ser notificado para apresentar a declaração devida pela interposição de recurso nos três dias subsequentes ao termos do prazo” (fls…, art. 10.º).
4. A decisão recorrida aceita, embora implicitamente, o entendimento de que a lei comporta a notificação oficiosa ao Ministério Público, nos termos do aludido art. 145.º, n.º 6, do CPC, recusando, porém, a prática de tal acto no Tribunal da Relação e naquele momento.
5. O efeito prático desta “interpretação normativa” e da decisão dela decorrente, consiste em coibir, irremediavelmente, a administração da justiça penal em sede de recurso por motivos puramente adjectivos, rectius administrativos.
6. Ora, o recurso do Ministério Público foi interposto no prazo dos três dias em que a lei, categoricamente, permite seja praticado o acto processual em causa.
7. Por outra parte, na tramitação do tribunal recorrido, jamais foi sequer suscitada a questão da multa ou da declaração sucedânea, pelo que a decisão recorrida, ao afirmar que “sendo certo que o Ministério Público não desenvolveu as diligências necessárias para que o recurso fosse considerado em tempo” incorre em erro sobre os factos do processo.
8. A decisão recorrida não invoca qualquer norma legal ou motivo racional que suporte a conclusão de que “não lhe cabe a si eventuais omissões na tramitação do processo perante as instâncias recorridas” (fls. 1432).
9. O argumento de analogia, tirado do precedente jurisprudencial (fls. 1432, nota 7), assenta na identidade dos casos comparados, mas tal não é o que aqui ocorre, pois os casos tratados nos arestos invocados não são idênticos. Com efeito, aqueles respeitam a ocorrências em que no tribunal a quo se suscitou a questão da falta do pagamento da multa devida e, já neste, tal não sucedeu.
10. Não há precedente jurisprudencial sobre a precisa questão de constitucionalidade em exame, embora o Tribunal Constitucional já tenha emitido pronúncia sobre uma questão de contexto idêntico, onde é feito um enquadramento da questão plenamente válido para o nosso caso.
11. Ali se recorda, que o Ministério Público é um sujeito processual determinante na tramitação concreta do processo, onde actua como “órgão de administração da justiça”, “colabora[ndo] com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as suas intervenções a critérios de estrita legalidade” e tendo como um das suas incumbências, precisamente, a de “Interpor recursos(…)”.
12. Depois, com a contada excepção dos “crimes particulares”, o Ministério Público está investido do exclusivo do exercício da acção penal, pelo que, qualquer impedimento ao legal exercício deste dever de ofício, ainda que por via de recurso jurisdicional, priva de tutela penal os superiores interesses, sociais e individuais, que a lei, assim, quis proteger.
13. Finalmente, cumpre relembrar, com o dito aresto, que “essa medida visa evitar o efeito definitivamente preclusivo da não observância de um prazo, com o possível sacrifício irremediável de uma posição juridicamente tutelável. É para obviar a essa consequência desproporcionadamente gravosa de uma falha muitas vezes compreensível, ainda que não integrável no conceito de “justo impedimento”, que a lei concede um prazo suplementar, de curta duração, para a prática do acto.”
14. Assim sendo, a “interpretação normativa”, materializada no acórdão recorrido, infringe, de modo plúrimo, as normas e princípios constitucionais relevantes no caso.
15. Por uma parte, não está motivada de direito, violando, assim, a obrigação de fundamentar, na forma prevista na lei, as decisões dos tribunais (CRP, art. 205.º, n.º 1, e CPP, art. 97.º, n.º 5).
16. Mais obsta à administração da justiça penal, substantiva, pois, sem motivo justificado, sobrepõe estritos motivos adjectivos ao exercício legítimo e tempestivo da acção penal pelo Ministério Público, em sede de recurso.
Impede, ainda, a discussão, pelos sujeitos processuais, e a apreciação e decisão, pelo tribunal a quo, de uma “questão nova”, sendo certo que a solução perfilhada não é necessária, pois há outras medidas judiciais, que permitem regular o caso de conformidade com a lei e que são tendencialmente idóneas a promover a função própria dos tribunais, enquanto órgãos de soberania que administram justiça em nome do povo (CRP, art. 202.º, n.ºs 1 e 2).
Por tais motivos, a decisão recorrida infringe o princípio do “Estado de direito” e da “proporcionalidade” que lhe é inerente e, bem assim, o “direito ao processo”, ao “processo equitativo” e os princípios da tutela jurisdicional efectiva (através das inerentes máximas pro actione e favor actione) e, finalmente, impede o exercício legítimo da acção penal pública pelo Ministério Público, em sede de recurso (CRP, arts. 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 219.º, n.º 1).
Nestes termos, no entender deste Ministério Público, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, assim, revogada a decisão recorrida para ser reformada quanto à questão de constitucionalidade, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade da “interpretação normativa” ali perfilhada.»
4. O recorrido A. contra-alegou como se segue:
«1. O recurso interposto pelo Ministério Público visa a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 145.°, n.°6 do CPC na interpretação que lhe foi dada nos Acórdãos supra referidos “por violação do princípio do tratamento igual ou da “igualdade de armas” consagrado nos arts. 2.°, 20.° n.°4 e 219.°, n.°1 da CRP no sentido de não impor ou sequer permitir a notificação do M.P. para que, sempre no “plano simbólico”, proceda a qualquer prática equivalente ao pagamento da multa prevista em tal n.° 6 por quem, não isento de tal pagamento, se esqueceu da respectiva autoliquidação ao abrigo do n.° 5 do mesmo preceito”.
2. Após ter sido colocada no processo a já sobejamente discutida questão de ser exigível ao Ministério Público, uma vez que não procede ao pagamento da multa, que emita uma declaração no sentido de pretender praticar o acto nos três dias posteriores ao termo do prazo, à qual, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação emitiu parecer defendendo que nem o pagamento da multa, nem a emissão de tal declaração é exigível uma vez que “O Ministério Público não intervém no processo penal em pé de igualdade com os demais intervenientes”;
3. Posição que não foi acolhida pelo Tribunal das Relação do Porto que decidiu que:
“Qual exigência do princípio do processo equitativo, assim como o particular quando pretende praticar o acto num dos três dias seguintes ao termo do prazo vem requerer o pagamento da multa correspondente, também o Ministério Público terá que requerer a sua prática fora do prazo legal, posto que neste caso à declaração não se siga a obrigatoriedade de proceder a qualquer pagamento”
4. Dando razão ao Arguido que, na senda da jurisprudência maioritária, defendeu que a dispensa da apresentação de tal declaração constituiria um injustificável favorecimento do Ministério Público, que veria o seu prazo originário de recurso elevado em três dias em relação ao prazo das restantes partes processuais.
5. O Ministério Público invoca agora a violação do princípio do tratamento igual ou da “igualdade de armas” consagrado nos art.ºs 2.°, 20.° n.°4 e 219.°, n.°1 da CRP para defender que, para além de estar isento do pagamento de qualquer multa, quer seja de 1.° dia, 2.° ou 3.°, o Ministério Público deveria ser ainda notificado, caso não emitisse tal declaração, para o fazer, ao que não se seguiria qualquer penalização… ou contrário das outras partes processuais.
6. Não assiste razão ao Ministério Público.
7. Salvo melhor opinião, é precisamente o princípio do tratamento igual ou da “igualdade de armas” consagrado nos art.ºs 2.°, 20.° n.° 4 e 219.°, n.°1 da CRP que faz com que seja totalmente descabido e inconstitucionalmente inaceitável o cumprimento no n.° 6 do art.º 145.° do CPCivil em relação ao Ministério Público quando este apresentou o seu recurso num dos três primeiros dias subsequentes ao termo do prazo, sem pagar qualquer multa, nem emitir qualquer declaração.
8. Conforme foi esgrimido pelo Tribunal da Relação do Porto na Decisão Sumária proferida nestes autos a 29 de Julho de 2009: “a forma de equilibrar, de certo modo, a posição da acusação e da defesa é precisamente onerar o Ministério Público com um dever que, simbolicamente, equivalha ao pagamento da multa por parte do particular”.
9. Ou seja, apesar da isenção do pagamento de qualquer multa não configurar a violação do princípio constitucional, entende-se que é, de alguma forma, mesmo que seja só no plano simbólico, e de certo modo, necessário equilibrar a posição da acusação e da defesa.
10. Ora, a posição ora defendida pelo Ministério Público, no Recurso a que ora se responde, olvida que o dever de emitir tal declaração é, desde logo, uma forma de equilibrar a posição da defesa e da acusação. Posições estas que se mantêm evidentemente diferentes.
11. Como doutamente se transcreve no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, decisão ora impugnada, “este princípio não reclama uma igualdade métrica nas várias actuações: “a igualdade de que se trata, não sendo matemática nem lógica, deve avaliar-se no contexto global da estrutura lógico-material da acusação e da defesa e da sua dialéctica e não, propriamente, em cada acto processual. Logo, relativamente a um acto concreto, a mera constatação de que não são exactamente iguais os direitos e deveres.., só por si não é suficiente para se ter como necessariamente violado o aludido princípio.”
12. É entendimento do arguido que a decisão recorrida não aceita, nem implícita nem explicitamente, o entendimento de que a lei comporta notificação oficiosa ao Ministério Público nos termos do aludido art.º 145.º n.° 6 do Código Processo Civil, nem neste nem em qualquer outro momento.
13. Salvo melhor entendimento, o n.° 6 do artigo 145.° do C.P.Civil só se enquadra estando em causa uma sanção pecuniária uma vez que só nestes casos poderá ser aplicada a penalização que o n.° 6 especificamente regula.
14. Ora, se só as partes processuais, que não o Ministério Público, são oneradas com o pagamento de tais multas, também só a estas partes é aplicável o n.° 6 do art.º 145.° do C.P.Civil.
15. Mesmo que de uma breve leitura se trate, não se pode retirar outra conclusão da decisão recorrida que não a rejeição da aplicação, seja qual for o momento, do mecanismo previsto no art.º 145.° n.° 6 do C.P.C.
16. A argumentação da decisão recorrida está de resto estruturada em três questões fundamentais.
Senao vejamos,
17. Em primeiro lugar, o tribunal a quo debruça-se sobre a questão do justo impedimento e, fazendo-o até de forma exaustiva, acaba por concluir que não se aplica in casu o art.º 146.° do C.P.C.
18. Da referida conclusão, a decisão recorrida parte para a análise do n.° 5 do art.º 145.° do C.P.C, constatando, após longa e esclarecedora exposição sobre o conteúdo normativo, implicações práticas da supradita norma e considerações jurisprudenciais, que o Ministério Público omitiu a declaração que lhe é exigida para beneficiar da prática do acto nos três dias posteriores ao termo do prazo.
19. Quanto à análise feita pelo Tribunal da Relação do Porto aos precedentes jurisprudenciais (fls. 1432, nota 7), perante os quais se verifica que o Tribunal Constitucional vem decidindo que:
“Resulta da transcrição feita que tem sido orientação deste Tribunal - jurisprudência que aqui também se seguirá por se não descortinarem melhores argumentos que a infirmem - que todas as diligências atinentes á admissão do recurso se devem integralmente processar perante o tribunal a quo, não cumprindo ao Tribunal Constitucional suprir as omissões das partes ou dos serviços de secretaria ocorridas nessa fase.
Perante esta linha jurisprudencial, é de manter a decisão reclamada, visto que é indiscutível que o requerimento de interposição de recurso deu entrada fora do prazo de que dispunham os Recorrentes para esse efeito e que se não mostra paga a multa a que se reportam os n.°s 5 e 6 do artigo 145.° do Código de Processo Civil.”
20. Dúvidas não poderão restar que a identidade dos casos comparados é evidente, pois, está em causa a falta da emissão da declaração que equivale, nos termos já decididos, ao pagamento da multa devida.
21. O Arguido considera as decisões impugnadas doutamente fundamentadas, superiormente pensadas e integralmente válidas, sendo que qualquer decisão em sentido contrário, essa sim, representaria uma violação do princípio do tratamento igual ou “da igualdade de armas” consagrado nos art.ºs 2.°, 20.° n.° 4 e 219. n.°1 da CRP.
Pelo exposto, entende o Arguido que não se verifica a inconstitucionalidade invocada pelo Ministério Público do artigo l45.°, n.° 6 do CPC na interpretação que lhe foi dada nos Acórdãos supra referidos por violação do princípio do tratamento igual ou da “igualdade de armas” consagrado nos art.ºs 2.°, 20.° n.°4 e 219.°, n.°1 da CRP.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A) Da admissibilidade e do objecto do recurso
5. Não é a primeira vez que este Tribunal se vê confrontado com uma questão atinente ao aproveitamento, pelo Ministério Público, do regime de “prorrogação” do prazo constante dos n.ºs 4 a 6 do artigo 145.º do Código do Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 107.º, n.º 5, do respectivo Código.
Nos Acórdãos n.ºs 59/91 e 355/2001, esteve em apreciação a questão de saber se a dispensa de pagamento de multa representa um privilégio inequitativo do Ministério Público e se a apresentação do recurso, nos três dias posteriores ao termo do prazo, faz impender sobre este sujeito processual o ónus de emitir uma declaração no sentido de pretender praticar o acto dentro desse prazo adicional, sob pena de extemporaneidade.
No primeiro daqueles Acórdãos, o Tribunal respondeu negativamente a esta questão, mas com dois votos de vencido, apoiados em fundamento expresso na declaração do primitivo Relator. Nessa declaração se considerou que a possibilidade de o Ministério Público beneficiar do prolongamento do prazo, “independentemente do facto de ser obrigado a praticar qualquer diligência”, acarretaria uma disparidade de tratamento, com “as inevitáveis consequências jurídico-constitucionais”, pelo que se perfilhou o seguinte entendimento:
«(…) o benefício da prática do acto nos três dias úteis seguintes pressupõe, por parte do Ministério Público, uma declaração de vontade em tal sentido, que de algum modo traduza uma aproximação ao regime das partes sujeitas ao pagamento da multa».
A solução defendida nesta declaração de voto fez vencimento no Acórdão n.º 355/2001 (DR, 2.ª Série, 13.10.2001, 17090), constando da respectiva decisão:
«Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a dimensão normativa que resulta do artigo 145.º, n.ºs 5 e 6, do Código de Processo Civil, segundo a qual o Ministério Público está isento da multa aí prevista, devendo contudo, e nos termos do artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o tribunal exigir que o Ministério Público, não pagando a multa, emita uma declaração no sentido de pretender praticar o acto nos três dias posteriores ao termo do prazo».
No Acórdão n.º 538/2007, esteve em causa apenas o momento da apresentação da referida declaração, questionando-se a constitucionalidade da interpretação do n.º 5 do artigo 145.º do CPC, no sentido de ser exigível ao Ministério Público a apresentação da declaração de pretender praticar o acto nos três dias úteis posteriores ao termo do prazo, antes de esgotado este mesmo prazo. O Tribunal julgou inconstitucional essa interpretação, por ela representar “um injustificado tratamento de desfavor do Ministério Público”, dado que o condicionamento da admissão do recurso ao preenchimento daquele requisito prévio «pode levar à irrecorribilidade, por esse sujeito, de decisões, num momento e em circunstâncias em que qualquer outro interveniente tinha ainda ao seu alcance a prática daquele acto».
O presente recurso incide sobre uma outra dimensão normativa do n.º 6 do artigo 145.º Tal como formulado pelo recorrente Ministério Público, na já aludida resposta ao convite a esclarecimento, o pedido de fiscalização de constitucionalidade tem como objecto a interpretação daquela norma “segundo a qual, tendo o recurso sido admitido no tribunal de 1.ª instância, exclusivamente com fundamento na existência de justo impedimento e concluindo a Relação pela inexistência desse justo impedimento, o Ministério Público já não pode ser notificado para apresentar a declaração devida pela interposição de recurso nos três dias subsequentes ao termo do prazo».
Esta definição do objecto do recurso incorpora no enunciado de uma interpretação normativa vicissitudes factuais da tramitação do processo, construindo uma “norma do caso” já muito próxima da conformação de uma decisão casuística, insusceptível de recurso, qua tale, para este Tribunal.
Mas, ainda assim, pode discernir-se, como fundamento da decisão, a que é imputada a alegada inconstitucionalidade, «um critério normativo ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações», para utilizarmos o termos com que o Acórdão n.º 108/2010 formula este pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade. Ele pode dar-se, pois, por preenchido, tanto mais que o elevado grau de concretização normativa tem correspondência no teor da fundamentação da decisão recorrida.
Há que ter presente, por outro lado, que não vem posta em causa a jurisprudência anteriormente firmada, nesta matéria, não sendo pedida a (re)apreciação de nenhuma das questões de base decididas pelos acórdãos deste Tribunal acima mencionados. É, designadamente, dada por assente (e pressuposto do pedido) a obrigatoriedade, estabelecida pelo Acórdão n.º 355/2001, de o Ministério Público apresentar uma declaração de vontade da prática do acto, para poder beneficiar do prazo adicional de três dias fixado no n.º 5 do artigo 145.º do CPC. Não obstante a decisão de 1.ª instância expressamente considerar que a apresentação do recurso em juízo, dentro desse prazo, “consubstancia declaração tácita de aproveitamento do benefício do art. 145.º, n.º 5, do CPC (…)”, contrariando, assim, de forma clara, a tese da exigência de uma declaração autónoma, em manifestação expressa da vontade em recorrer, e não obstante, ainda, o Ministério Público, na sua reclamação para a conferência e no próprio requerimento de recurso, ter salientado que tal declaração não é exigida por lei, reputando-a de “duvidosa legalidade”, o ponto não chegou a ser contestado, do ponto de vista da sua conformidade constitucional. Muito pelo contrário, a questão posta – no fundo, a questão das consequências da não apresentação, pelo Ministério Público, da referida declaração -, só faz sentido, como é evidente, assumindo como um dado a exigibilidade dessa declaração.
O cerne da questão a decidir pode ser definido como o de saber se, não tendo o Ministério Público desenvolvido “as diligências necessárias para que o recurso fosse considerado como entrado em tempo [leia-se, não tendo o Ministério Público apresentado declaração de pretender recorrer], então é inexorável a sua intempestividade”, como se pode ler no acórdão recorrido. Representando a exigência dessa declaração “uma aproximação ao regime das partes sujeitas ao pagamento da multa”, a questão, reportada ao enunciado do n.º 6 do artigo 145.º do CPC, pode desdobrar-se em duas apreciações sucessivas. A primeira consistirá em saber se, sendo a declaração um substituto da multa, deve reger, em relação a ela, por respeito do princípio de igual tratamento, o disposto, quanto à multa, naquele preceito, isto é, se, tendo o recurso sido interposto dentro do prazo adicional de três dias, mas omitida a declaração de querer recorrer, havia ou não lugar à notificação para a sua apresentação. Dada a posição assumida pelo tribunal recorrido, haverá depois a decidir se, não tendo havido essa notificação, dentro daquele prazo, é constitucionalmente conforme considerar que ela já não é possível.
Em boa lógica de fundamentação, só uma resposta positiva à primeira questão justifica o trânsito para a segunda, pois, se a norma for interpretada como referível apenas à multa, e não já à declaração, entendida esta (numa dada interpretação) como exigível ao Ministério Público, é evidente que o a questão do não cumprimento do n.º 6 do artigo 145.º (na parte em que impõe a notificação) não chega sequer a colocar-se. Ora, tendo o tribunal recorrido, depois de se debruçar extensamente sobre a possibilidade de cumprimento desse acto, no momento processual em que emite a sua decisão, concluído pela sua inviabilidade, compreende-se, em face disso, que o Ministério Público tenha considerado, nas suas alegações, que «a decisão perfilha, embora implicitamente, o entendimento de que a lei comporta a notificação oficiosa ao Ministério Público nos termos do aludido art. 145.º, n.º 6, do CPC».
Mas, em nosso juízo, a estrutura argumentativa e o teor da fundamentação da decisão recorrida não se adequam a este entendimento. Quando começa a abordar a questão do cumprimento do disposto no n.º 6 do artigo 145.º (a fls. 1431 dos autos), a propósito da invocada violação do princípio da igualdade, o Tribunal da Relação do Porto perspectiva-a, de imediato, sob o prisma da extemporaneidade, nessa instância e fase processual, da apresentação da declaração e, portanto, de uma notificação para esse efeito. Mas, de modo algum o faz por ter dado como certa a aplicabilidade a esse acto do disposto, naquela norma, quanto ao pagamento da multa. Que assim não é resulta, ainda que a afirmação não prime pela clareza, do que se diz, in fine da fundamentação, a título de complemento do anteriormente exposto, e chamando à colação (em itálico) um passo de um acórdão do STJ : «Mas ainda por outra razão improcederia a alegada violação do princípio da igualdade. Como sabemos este princípio não reclama uma igualdade métrica nas várias actuações: “a igualdade de que se trata, não sendo matemática nem lógica, deve avaliar-se no contexto global da estrutura lógico-material da acusação e da defesa e da sua dialéctica e não, propriamente, em cada acto processual. Logo, relativamente a um acto concreto, a mera constatação de que não são exactamente iguais os direitos e deveres …só por si, não é suficiente para se ter como necessariamente violado o aludido princípio”».
A interpretação mais plausível deste trecho, referido ao que nos autos está em causa, é a de que o tratamento não absolutamente igualitário dos ónus de apresentar declaração da vontade de recorrer e de pagar a multa não fere o princípio da igualdade.
Esta é uma “outra razão” que se acrescenta à primeira, ambas concorrendo, no mesmo sentido, para fundamentar a decisão. Quer dizer, a questão de base da aplicabilidade à declaração do disposto no n.º 6 do artigo 145.º, devidamente suscitada no recurso de apelação do Ministério Público e enunciada no relatório do acórdão recorrido, não é neste equacionado como a questão central e prévia que é, mas como uma segunda componente da ratio decidendi, sendo a resposta que lhe é dada, não a justificação para passar, em termos linearmente sequenciais, a um segundo patamar da apreciação, mas “outra razão” paralelamente coadjuvante para concluir que não há violação do princípio da igualdade. Tendo encontrado, na intempestividade da apresentação da declaração pelo Ministério Público, um fundamento tido por incontroverso para não admitir o recurso, o tribunal recorrido dá-lhe primazia de análise e destaque saliente, quase se dispensando de apreciar a questão posta (todavia decisiva) do alcance e âmbito aplicativo do artigo 145.º, n. 6. E, quando lhe faz uma curta alusão, deixa entender que a não transposição, para o ónus imposto ao Ministério Público, do regime da notificação previsto, na referida norma, para o pagamento da multa a cargo dos outros intervenientes processuais, não viola o princípio da igualdade.
Ambas as questões devem, pois, ser apreciadas, ainda que por ordem inversa.
B) Do mérito do recurso
6. Como acima se enunciou, há que ajuizar, em primeiro lugar, da constitucionalidade do n.º 6 do artigo 145.º do CPC, interpretado «no sentido de não impor ou sequer permitir a notificação do M.P. para que, sempre no “plano simbólico”, proceda a qualquer prática equivalente ao pagamento da multa prevista em tal n.º 6 por quem, não isento de tal pagamento, se esqueceu da respectiva autoliquidação ao abrigo do n.º 5 do mesmo preceito». O que está em causa é saber se, considerada a declaração um sucedâneo funcional do pagamento da multa, exigível ao Ministério Público que deste está isento – numa dada interpretação do n.º 5 do artigo 145.º que, repete-se, não está em apreciação nos presentes autos - tal impõe, para preservar a igualdade de tratamento, que esse sujeito beneficie também da notificação, prevista, no n.º 6 do mesmo artigo, para o pagamento da multa aí exigida.
Colocando-se, como lhe é forçoso, dentro das coordenadas decorrentes da colocação, nestes termos, da questão, o Tribunal entende que a resposta que ela requer é de sentido positivo.
Foi preocupação legislativa, com a solução consagrada no n.º 6 do artigo 145.º do CPC, evitar que um acto, praticado dentro do prazo suplementar concedido pelo n.º 5, pudesse ficar sem efeito por meras razões de não cumprimento de uma exigência lateral, de carácter pecuniário, estranha ao desenrolar da sequência da tramitação processual, sem que o interessado fosse notificado para realização da prestação em falta. Estabelecida a analogia funcional entre o pagamento da multa e a apresentação da declaração, nenhuma razão justifica que o tratamento igualitário que alegadamente impõe a exigência desta não seja “pensado até ao fim”, com aplicação ao Ministério Público de um regime equivalente, na medida do possível, ao estabelecido, no n.º 6, para os demais sujeitos processuais. Representando este regime a garantia de uma segunda oportunidade de satisfazer, fora do prazo, uma exigência que é condição de eficácia de um acto já praticado no processo, de igual garantia deve beneficiar a entidade a quem uma exigência tida por sucedânea é imposta. De outro modo, uma solução estribada na salvaguarda de um imperativo de igualdade poderia provocar perversamente, e como efeito seguramente preterintencional, um desequilíbrio de posições processuais, em desfavor do Ministério Público.
7. Apurada esta primeira conclusão, há que ajuizar, de seguida, da constitucionalidade da interpretação do artigo 145.º, n.º 6, do CPC, segundo a qual, tendo o recurso sido admitido no tribunal de 1ª instância, com dispensa de declaração da intenção de recorrer, por razões que o Tribunal da Relação entendeu injustificadas, o Ministério Público já não pode ser notificado para apresentar essa declaração, devida pela interposição do recurso nos três dias subsequentes ao termo do prazo.
Observe-se liminarmente que, neste segundo patamar, não é tanto por incidência do princípio da igualdade que a questão deve ser apreciada e decidida. Foi essa, no entanto, a perspectiva exclusivamente assumida pela decisão recorrida, que, omitindo mais considerações (para além da invocação de precedentes), lhe dá relevo decisivo, como transparece, com especial nitidez, do seguinte passo:
«E não se argumente invocando a violação do princípio da igualdade, pois que se o recorrente fosse outro interveniente, que não o Ministério Público, sempre a decisão seria igual. Portanto, improcede a alegada violação do princípio da igualdade pois que não foi decidido que sendo o recorrente um outro interveniente haveria lugar, nesta sede, ao cumprimento do n.º 6 do art. 145.º do Código de Processo Civil».
Mas, nesta matéria, se a observância do princípio da igualdade é condição necessária, não é condição suficiente da constitucionalidade da interpretação impugnada. Mesmo estando assegurado o respeito por esse princípio, importa ainda fundamentalmente decidir se os valores e interesses, constitucionalmente protegidos, que inspiram as soluções do artigo 145.º suportam, particularmente tratando-se de um recurso, o critério interpretativo impugnado. Ao acentuar-se que, se o recorrente fosse outro interveniente, “sempre a decisão seria igual”, fica por fundamentar que a interpretação de que ela resulta está, em si mesma, independentemente da sua aplicação igualitária, em conformidade com outros parâmetros constitucionais aplicáveis.
Há que considerar, em segundo lugar, como não pertinente o chamamento à colação de precedentes decisões deste Tribunal, no sentido da extemporaneidade de recursos de constitucionalidade interpostos fora do prazo, sem que os recorrentes tivessem procedido ao pagamento da respectiva multa nem notificados para o fazer.
Importa atentar, na verdade, na competência específica deste Tribunal, em matéria de fiscalização de constitucionalidade, e nos diferenciados planos da sua intervenção, nos presentes autos e naqueles que deram azo àqueles arestos. Nestes últimos, a questão de constitucionalidade que motivara o recurso nada tinha a ver com a agora em juízo. A apresentação do recurso fora do prazo não ofereceu, aí, o objecto do recurso de constitucionalidade, constituindo antes uma ocorrência na tramitação desse recurso. Em face desse dado, o Tribunal limitou-se a entender que “não lhe cabe suprir as omissões das partes ou da secretaria do tribunal recorrido”, o que levou à decisão de extemporaneidade do próprio recurso de constitucionalidade. Com essa decisão, o Tribunal mais não fez do que constatar a sua incompetência para determinar directamente o modo de processar a tramitação dos autos nas instâncias.
Não é isso que está em questão, nos presentes autos. A exigibilidade da notificação e as consequências de ela não ter sido efectivada fornece o próprio objecto do recurso de constitucionalidade. Dentro da sua competência própria, cumpre ao Tribunal apreciar, em recurso apresentado em tempo, a solução que foi dada na instância recorrida à alegação de inconstitucionalidade da interpretação seguida, conducente à decisão de intempestividade do recurso apresentado da decisão de 1.ª instância. Uma eventual decisão de inconstitucionalidade forçará, é certo, à reformulação, na instância recorrida, dessa decisão – mas essa é a consequência geral do provimento dos recursos de constitucionalidade, representando a incidência, sobre o caso, de uma questão normativa de conformidade constitucional, não uma interferência directa na condução da tramitação da causa, com a prática, neste Tribunal, de um acto devido e omitido nas instâncias.
8. Feitas estas necessárias precisões, resta abordar a questão decisiva de saber se se coaduna com a posição constitucionalmente atribuída ao Ministério Público – o tratamento dos recursos de parte está fora do âmbito do objecto da presente questão - a interpretação do n.º 6 do artigo 145.º do CPC que leva a considerar como “inexorável” a intempestividade de um recurso interposto por essa entidade, não tendo sido apresentada, na instância recorrida, declaração de querer recorrer, nem emitida, nessa instância, notificação para esse efeito.
É oportuno retomar, neste contexto, considerações expendidas no Acórdão n.º 538.º/2007, a propósito do papel do Ministério Público, em processo penal:
«Participante processual de intervenção relevantíssima na tramitação concreta do processo, o Ministério Público não assume, porém, o papel de parte. É antes um sujeito do processo, que nele actua, no dizer do mesmo Autor [Figueiredo Dias], “como um órgão de administração da justiça com a particular função de, nas palavras do art. 53.º-1, ‘colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito’” (ob. cit., 25).
Enquanto titular do exercício da acção penal e defensor da legalidade democrática, o Ministério Público deve pautar-se por critérios de estrita legalidade e objectividade (artigo 219.º, n.º 1, da CRP, e artigo 53.º, n.º 1, do CPP). Desempenha um ofício público, para o qual é dotado de poderes funcionais, pelo que a sua posição diferencia-se notoriamente da dos titulares de direitos subjectivos, em tutela de interesses próprios.
Que assim é, prova-o eloquentemente, em matéria de recursos, o disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 53.º do CPP. Aí se lhe atribui competência para “interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa” (itálico nosso). E tem o poder-dever de o fazer, em protecção desse interesse, sempre que o objectivo de uma boa administração da justiça – o único que lhe cumpre perseguir – assim o aconselhar.
7. Tendo em conta o que se disse no número anterior, cremos que, na apreciação da posição processual do Ministério Público, enquanto recorrente, não pode ser directamente chamado à colação o exercício, por parte deste órgão, do direito do acesso ao direito (artigo 20.º da CRP).
Este direito fundamental ajusta-se à tutela de posições subjectivadas, radicadas na esfera dos titulares de interesses particulares que, no quadro do ordenamento jurídico, reclamam do Estado reconhecimento e efectivação, ou medidas de reparação. Por sua natureza, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva dirige-se contra o Estado e contra os seus órgãos de administração da justiça.
Estando dentro do aparelho estadual que desempenha essa função, o Ministério Público não pode ser visto como titular activo de um direito exercitável, nesta dimensão, contra os órgãos do poder judicial com os quais colabora.
Como se sustenta no Acórdão n.º 530/01:
«Pode, desde logo, questionar-se se o direito de acesso à justiça e aos tribunais, como direito fundamental dirigido contra o Estado, não deverá ser considerado um direito que apenas sujeitos privados, e não o próprio Estado – designadamente, entidades nas quais se encabeça o ius puniendi estatal (como é o caso do Ministério Público) –, podem invocar.
Seja, porém, como for quanto a esta questão em geral, deve entender-se que o exercício da acção penal pelo Estado (através do Ministério Público) não é protegido pelo direito fundamental de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20.º da Constituição.»
8. Mas, dizer isto não significa, de modo algum, apartar a apreciação da conformidade constitucional da interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida dos padrões valorativos que inspiram o artigo 20.º da CRP.
Na sua dimensão objectiva, este “é uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 409). Instrumento de defesa dos direitos subjectivamente encabeçados, aquele preceito dá expressão, no seu âmbito normativo próprio, a uma exigência geral de realização e preservação da legalidade democrática.
Ora, o exercício da acção penal pelo Ministério Público é também norteado, como vimos, por este verdadeiro pilar da ordem constitucional. “Independentemente da sua subjectivação numa posição jurídica individual”, o acesso à justiça, corporizado, em matéria de recursos, na efectiva disponibilidade, em termos equitativos, de meios processuais indispensáveis ao adequado controlo da conformidade ao direito das decisões tomadas em juízo, é um valor tutelável em si mesmo (cfr. o voto de vencida da Conselheira Maria Fernanda Palma, aposto no Acórdão n.º 530/01). Por detrás do direito fundamental de acesso à justiça está o mesmo princípio geral de realização do direito actuado pelos órgãos estaduais com competência nesta matéria.
É em função da plena observância desse princípio e do valor que ele encerra que o Ministério Público tem o poder-dever de interpor recurso, quando entenda que uma decisão judicial não assegura a sua realização. Como se proclama no predito voto de vencida:
«O recurso é essencial ao controlo das decisões judiciais num estado de direito e quaisquer restrições injustificadas afectam essa importantíssima função de controlo da correcta fundamentação das sentenças bem como a inerente preservação da legalidade democrática.»
A privação de eficácia do recurso, efectivamente interposto pelo Ministério Público no prazo adicional de três dias em que o n.º 5 do artigo 145.º do CPC permite que o acto seja ainda praticado, inibe essa entidade de cumprir em pleno, por via recursória, o papel institucional, que constitucionalmente lhe cabe, de instrumento de realização do direito. E tal acontece quando não foi praticado o acto oficioso de notificação para apresentação da declaração, entendido por nós como devido (em face da interpretação que a considera exigível), se ela não for espontaneamente apresentada, no prazo legal. Notificação essa que, a ser emitida, teria muito provavelmente evitado a omissão a que agora se imputa a intempestividade do recurso.
Nas circunstâncias descritas, a interpretação questionada lesa desproporcionadamente a tutela jurisdicional efectiva dos interesses que ao Ministério Público cabe defender, pondo em causa a valência da dimensão objectiva da “norma-princípio” constante do artigo 20.º da Constituição, bem como o desempenho adequado das funções constitucionalmente reservadas a essa entidade (artigo 219.º, n.º 1, da CRP). Atente-se, na verdade, em que o muito gravoso efeito substantivo de frustração “inexorável” de interesses relevantes resultaria, não da omissão do acto de recurso, ou da sua interposição fora do prazo, mas de ele não ser acompanhado de uma declaração apenas confirmativa de uma intenção que já resulta concludentemente manifestada pela prática do acto. Retirar essa conclusão do não preenchimento de uma condição “adjectiva”, actuante meramente ”no plano simbólico” (como é expressamente reconhecido por quem advoga a exigência de apresentação da declaração), e para o que decisivamente contribuiu o não cumprimento, pelo tribunal onde o recurso é interposto, de um dever de ofício de notificação, mostra-se, a todas as luzes, como constitucionalmente desconforme.
Nem é necessário enfatizar, como fez o Representante do Ministério Público, o facto de, na 1.ª instância, ter sido encarada (e tacitamente admitida) a existência de justo impedimento. Essa é apenas uma razão explicativa para a omissão de notificação, nessa instância, não uma justificação para a sua obrigatoriedade, sempre afirmável, independentemente daquela circunstância, como garantia “última” do preenchimento da apresentação da declaração, tida como um pressuposto procedimental da eficácia do recurso.
Nem se diga que o acto de notificação, normativamente imposto, já não é praticável na instância (Tribunal da Relação) e na fase processual em que a questão se pôs. Cabe ao tribunal recorrido, em face dos instrumentos processuais disponíveis, retirar as conclusões devidas da decisão agora tomada.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20.º, em conjugação com o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 219.º, n.º 1, da Constituição da República, a interpretação do artigo 145.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, segundo a qual, tendo o recurso sido admitido no tribunal de 1.ª instância, exclusivamente com fundamento na existência de justo impedimento e concluindo a Relação pela inexistência desse justo impedimento, o Ministério Público já não pode ser notificado para apresentar a declaração devida pela interposição de recurso nos três dias subsequentes ao termo do prazo;
Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.