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Processo n.º 650/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Nos autos de impugnação de paternidade com o n.º 3049/09.4TBGDM, do 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar, foi proferido despacho saneador em que se julgou improcedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção aí suscitada, com a seguinte fundamentação:
“[…]
Da excepção peremptória da caducidade.
Na presente acção instaurada por A. contra B. e C. veio a primeira citada ré contestar, impugnando a factualidade alegada pelo autor e excepcionando a caducidade do direito de acção.
Como suporte da invocada excepção alegou a ré que o autor instaurou a presente acção ao abrigo do disposto no art.º 1842.º, nº 1 a) do Cód. Civil, sendo certo que alegou ter tomado conhecimento dos factos em que assenta acção em 1991, pelo que se verifica a caducidade.
O A. respondeu à excepção invocada dizendo que apenas há dois anos é que teve conhecimento dos factos em que apoia a presente acção.
As partes foram notificadas para, querendo, se pronunciar conforme antecede, quanto à questão da (in)constitucionalidade da norma.
Apreciando.
A questão a decidir no momento é saber se a acção de impugnação de paternidade está sujeita a prazo de caducidade, ou, por outras palavras, se o disposto 1842º, n.º 1 a) do Cód. Civil quanto ao estabelecimento de prazo de caducidade está ferido de inconstitucionalidade.
Se se entender que não há prazo de caducidade para a acção de impugnação de paternidade, a resolução da excepção invocada não depende da factualidade que esteja controvertida e poder-se-á decidir de imediato.
Determina o art. 1842.º, nº 1 a) do CC na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 01/04 que a acção de impugnação de paternidade pode ser intentada pelo marido, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade.
É sabido que o acórdão constitucional de 23/2006, proc. 885/05., rel. Mota Pinto declarou inconstitucional, com força obrigatória geral a norma constante do n.º 1 do art. 1817.º do CC aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo código, na medida em que previa, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 da CRP.
O legislador, pela Lei n.º 14/2009, de 01-04 alterou a formulação da al. a) do n.º 1 do art. 1842.º, passando ali a constar o prazo de caducidade de três anos em vez dos antecedentes dois.
Acontece, porém, que a leitura que se faz da Constituição, ponderando os interesses em causa, resulta não poder o direito de impugnação da paternidade ser coarctado por um limite temporal qualquer que ele seja.
E porquê-
A razão de ser que existe quanto ao direito de investigação e de impugnação da paternidade para o filho investigante/impugnante, no seu direito à identidade pessoal, o direito familiar que lhe assiste a ser-lhe reconhecido como sendo filho do seu pai, o direito ao conhecimento da ascendência biológica - AcSTJ 17/04/2008, rel. Fonseca Ramos, é equivalente para o presumido pai o é apenas porque ocorre um nascimento dentro do seu casamento e assim fim vinculado ao estabelecimento de uma paternidade sem mais.
A este valor primário biológico mas de inegável importância para a definição do ser num papel de integração social não podem obstar razões de segurança jurídica e estados jurídicos familiares patrimoniais estabelecidos que venham a ser abalados pela exclusão de uma paternidade presumida. Sobretudo quando hoje em dia pelos testes de ADN é possível com segurança estabelecer a verdade biológica.
A propósito de segurança jurídica escreveu Baptista Machado: «A segurança é, pois, uma das exigências feitas ao Direito – pelo que, em última análise, representa também uma tarefa ou missão contida na própria ideia de Direito. A exigência de segurança pode, porém, conflituar com a exigência de justiça. Justiça e segurança acham-se numa relação de tensão dialéctica.
A justiça representa um ideal de hierarquia superior. A segurança representa um valor de escalão inferior, mais directamente ligado à utilidade, às necessidades práticas e às urgências da vida. Pelo que, em muitos casos, a própria praticabilidade do Direito pode exigir que o valor segurança prevaleça sobre o valor justiça (...)
Uma justiça puramente ideal, desacompanhada de segurança, seria vazia de eficácia e, por isso, não passaria de piedosa intenção. (...) A segurança traz ordem e a paz social. Não é, porém, qualquer ordem social que pode interessar ao homem, mas apenas uma ordem justa (...)», Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina Coimbra, 1993, pp. 55 e 56.
Conforme se afirma no ACSTJ de 25/03/2010, rel. Hélder Roque, in dgsi.pt
«Efectivamente, os prazos de caducidade nas acções de estabelecimento de filiação estão em crise ou tornaram-se menos sedutores, sobretudo quando a caducidade não visa proteger uma realidade com consistência familiar efectiva, um vinculo de filiação “social” que desempenhe as suas funções, um vínculo que se exprima por «posse de estado», apesar de lhe faltar o fundamento biológico, tornando-se a previsão de um prazo com os fins típicos e abstractos da defesa e segurança, pouco convincente nestas matérias (18).
Deste modo, o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere, claramente, a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do direito de impugnar.
Enquanto a ordem jurídica nacional continuar a ser de matriz, essencialmente, biologista, é espectável que o direito de pesquisar a verdade não caduque, devendo o Direito da Filiação adequar-se à verdade biológica, por, apesar de tudo, ser ainda a “mais verdadeira”(19), ou, então, dito de outro modo, a menos imprevisível, que busca a coincidência entre o Direito e as realidades do sangue, em vez de procurar garantir o estatuto de filho “legítimo” e um certo entendimento da “paz das famílias”.
Esta é a solução que está de acordo com a tendência moderna e dominante, embora não pacífica, em direito comparado, de sobrepor às exigências da segurança jurídica, da eficácia das provas e da estabilidade das situações familiares adquiridas aquele interesse público da procura da verdade biológica, quando, não obstante a subsistência jurídica da família conjugal e do vínculo da paternidade, o estado civil do filho não tem correspondência social, familiar e afectiva (20).»
O direito à afirmação da filiação ou da não filiação por parte do pai impugnante é um direito de personalidade que não pode estar sujeito a prazo nem ceder perante valores de segurança jurídica, pelo que o estabelecimento de prazos de caducidade à acção de impugnação de paternidade viola as regras constitucionais vertidas nos arts. 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.» (sublinhados meus)
Determinou o ACSTJ de 21/02/2008, rel. Bettencourt de Faria que:
«O prazo do artº 1842º, nº 1, alínea a), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional.», in dgsi.pt.
Também no ACSTJ de 07/07/2009, rel. Oliveira Rocha, se sumaria:
1. O Acórdão do TC nº 23/06, de 10.01, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do nº 1 do art. 1817º do C. Civil, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal”
2. Tratando-se de estabelecer a paternidade, invoca-se o direito à identidade, na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem, dos arts. 25º, nº 1 e 26º, nº 1, da Constituição, que não seria devidamente acautelado, se a acção que o concretiza estivesse sujeita ao dito prazo de caducidade.
3. Esta doutrina é aplicável às acções de impugnação da paternidade.
4. Deste modo, o prazo previsto no art. 1842º, nº1, alínea a), do C. Civil, mesmo na actual redacção (Lei nº 14/2009, de 1 de Abril), na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional.», in dgsi.pt. (sublinhados meus)
Finalmente, o ACSTJ de 25/03/2010, rel. Hélder Roque, in dgsi.pt afirma-se:
I- A regra do pater is est quem nuptiae demonstrant contém, em si mesma, uma verdadeira presunção legal para o estabelecimento da paternidade, de natureza iuris tantum, por se basear num juízo de probabilidade e não de certeza, que consente a correcção do erro, com a consequente possibilidade de se fazer prova do contrário do facto presumido.
II - Na acção de impugnação de paternidade proposta pelo marido da mãe, o autor defende um direito próprio à verdade biológica, com vista a ilidir a presunção de paternidade atentória da mesma.
III - Jogando-se a sorte da relação jurídica de paternidade na certeza da prova científica, em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado, fora do sortilégio da prova testemunhal, não se compreenderia que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo art. 1826º, n.º 1, do CC.
IV - Se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também, a impugnação da paternidade pelo presumido progenitor pode ser intentada, sem incorrer em caducidade, sob pena de inaceitável discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial.
V - A impugnação deduzida pelo autor, relativamente à paternidade presumida do réu menor, no que concerne à substância de um casamento que não chegou a durar sete anos e de uma coabitação inferior a quatro, não agride um estado jurídico e social prévio, dotado de uma longevidade e densidade consideráveis, capaz de justificar uma particular censura jurídico-constitucional.
VI - A norma constante do art. 1842º, n.º 1, al. a), do CC, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do progenitor e marido da mãe propor, a todo o tempo, acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era pai biológico, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva e bem assim como do preceituado pelos arts. 26º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da CRP.». (sublinhados meus)
Acompanhando a jurisprudência que antecede e considerando o principio da verdade biológica na afirmação da filiação, impõe-se afirmar que tal definição da relação jurídico-familiar não pode ficar sujeita a prazos, sendo os direitos que delas emergem são imprescritíveis e sem sujeição a prazos de caducidade.
Assim, reputando-se a norma do art. 1842.º a) do CC materialmente inconstitucional, decide-se recusar a sua aplicação nos autos.
Nesta sequência, inexiste fundamento legal para a invocada caducidade do direito do A. pelo que deve improceder esta excepção.
Pelo exposto, decide-se não aplicar o art. 1842.º, n.º 1 a) do Código Civil, por se tratar de norma materialmente inconstitucional.
Assim acontecendo, e inexistindo fundamento para a alegada caducidade do direito do A. em propor a presente acção, julga-se improcedente a invocada excepção.
[…]”
O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, por nela se ter recusado a aplicação da norma constante do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Apresentou alegações em que concluiu do seguinte modo:
“Por todo o exposto ao longo das presentes alegações, e embora sem deixar de reconhecer que qualquer posição adoptada em matéria de direito de família, designadamente no domínio da filiação, é susceptível de leituras multifacetadas, assentes em concepções muito pessoais dos interesses em confronto neste tipo de relações, propende-se a concluir, como a decisão recorrida, pela inconstitucionalidade do art. 1842, nº 1, alínea a) do Código Civil.
Com efeito, considerando que o princípio da verdade biológica se encontra subjacente às alterações legislativas sobrevindas em matéria de direito de família e filiação, a conclusão a retirar de tal constatação é a de que a definição da relação jurídica familiar não deve poder ficar sujeita a prazos de caducidade que impeçam a sua concretização.
Tais prazos não se revelam absolutamente necessários e, muito menos, proporcionais, aos valores que estão em causa neste tipo de relação.
Ainda que assim se não entenda, porém, deverá haver, pelo menos, uma proporção razoável entre a fixação de um prazo de caducidade para a propositura de uma acção de investigação de paternidade e para a propositura de uma acção de impugnação de paternidade, não sendo lícito fazer pender a balança, exclusivamente, para um dos elementos da relação familiar, neste caso, o filho.
São, na verdade, estreitamente associados os direitos de investigar a sua paternidade, bem como o de a impugnar, pretendendo ambos definir uma relação jurídica familiar assente na verdade biológica.
Assim, a fixação de um prazo de caducidade de três anos, para o marido da mãe intentar a acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era o pai biológico, poderá revelar-se inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva, bem como dos arts. 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.”
Fundamentação
O Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar sobre esta questão de constitucionalidade.
Com efeito, no seu Acórdão n.º 446/10, desta secção (acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt), decidiu este Tribunal não julgar inconstitucional, a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade.
Uma vez que estamos precisamente perante um pedido de fiscalização de constitucionalidade do mesmo preceito e não foram invocadas razões que não tenham sido ponderadas na fundamentação daquele Acórdão, a mesma é inteiramente transponível para o presente caso, pelo que, mantendo-se a posição de não julgar inconstitucional a referida norma, é de conceder provimento ao recurso.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842.º n.º 1 alínea a) do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade.
b) conceder provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.