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Processo n.º 206/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
(Conselheira Maria João Antunes)
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal ConstitucionalI – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A. foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele tribunal de 5 de Fevereiro de 2010.
2. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra recusou a aplicação da norma ínsita no artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), “quando interpretada no sentido de que consagra uma responsabilidade subsidiária pelas coimas que se efectiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora”, por violação do princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP). E declarou, por isso, “extinta a execução por coimas”.
A decisão recorrida, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“ (…) No âmbito do actual regime vamos seguir de perto a jurisprudência mais recente do STA (…) em especial, o último Acórdão (…) que conhecemos, relatado pela Sr.ª Conselheira Dulce Neto, que por aderirmos na íntegra à fundamentação ali aduzida se transcreve parcialmente: « (…) no processo de execução fiscal só podem ser executados os devedores originários e seus sucessores das dívidas tipificadas no art. 148º do CPPT [tributos, coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em processo de contra-ordenações tributárias (…)], bem como os garantes que se tenham obrigado como principais pagadores, até ao limite da garantia prestada. Por conseguinte, o processo de execução fiscal pressupõe a existência de uma dívida com a natureza prevista no art. 148º e que tem de estar titulada: certidão extraída do título de cobrança relativa a tributos e outras receitas do estado; certidão de decisão exequível proferida em processo de aplicação de coimas; certidão de acto administrativo que determine a dívida a ser paga; qualquer outro título a que, por lei especial, seja atribuída força executiva. Todavia, no âmbito da execução fiscal está previsto o posterior chamamento á execução de outras pessoas que não constem no título executivo, designadamente dos responsáveis subsidiários (previstos legalmente) pelo pagamento da dívida e que são chamados a pagar a totalidade da dívida do devedor originário, operando-se uma alteração subjectiva da instância executiva; compreensível no que concerne ás dívidas de natureza tributária face à noção de sujeito tributário (art. 18º, nº3 da LGT)».
« (…) a responsabilidade tributária subsidiária reporta-se sempre á dívida que se encontra certificada no título executivo, abrangendo a totalidade dessa dívida, os respectivos juros e demais encargos legais, sendo, assim, uma responsabilidade pelas dívidas que constam do título executivo e que têm de ter, necessariamente, a natureza de tributos, coimas ou demais dívidas ao Estado tipificadas no art. 148º do CPPT.
É por essa razão que não é preciso outro título executivo para realizar coactivamente a prestação relativamente ao responsável subsidiário tributário e, é por isso que a LGT confere a este o direito de impugnar (graciosa ou contenciosamente), nos termos e com os fundamentos previstos no CPPT (art. 232º, nº4 da LGT). (…)
Tudo isto para dizer, em síntese, que a reversão da execução provoca, inevitavelmente, a transmissão da responsabilidade pelas dívidas que constam no título executivo para aquele que a lei aponta como responsável subsidiário, dívidas que têm, obrigatoriamente, a natureza de tributos, coimas e dívidas ao Estado tipificadas no art. 148º do CPPT.
Questão diversa é a de saber da natureza jurídica dessa responsabilidade tributária subsidiária, designadamente da responsabilidade dos gerentes e administradores das sociedades pelo pagamento das dívidas tributárias da sociedade, qual a causa de justificação para essa responsabilização.
(…) qualquer que seja a posição que se acolha para compreender o fundamento jurídico desta responsabilização tributária subsidiária, não se pode confundir esse fundamento com o objecto dessa mesma responsabilidade. O objecto é a totalidade da dívida certificada no título, os juros de mora e demais encargos legais.
A esta luz, e visto que o mecanismo da reversão está estruturado somente para a responsabilidade pelas dívidas tributárias que constam no título executivo, parece-nos totalmente indefensável sustentar que as dívidas que o responsável subsidiário é chamado a pagar após a reversão podem ter a natureza e proveniência diferentes daqueles que constam no título, fundada numa responsabilidade própria e autónoma deste.
(…) ao aplicar a responsabilidade do art. 8º do RGIT, através do mecanismo da reversão, a A.T. não está a interpretar e aplicar o preceito no sentido de que a responsabilidade subsidiária nele prevista é por dívida distinta da que consta do título, designadamente de natureza civil e cariz indemnizatório, pois que assim não fosse não estaria, como está, a utilizar o mecanismo da reversão, o qual está estruturado apenas para os casos de responsabilização por dívidas de outrem e implica, necessariamente, a transmissão da obrigação de cumprimento da sanção que constitui a dívida exequenda.». Ora uma tal interpretação, concretizada na execução a que respeita a presente oposição, consubstanciada, necessariamente, numa transmissão de responsabilidade pelas coimas aplicadas à sociedade infractora, é proibida pela Constituição da República Portuguesa no n.º 3 do art. 30º.
«A intransmissibilidade das penas, embora previsto no n.º 3 do art. 30º da C.R.P. para a penas, deve aplicar-se a qualquer tipo de sanções, designadamente às coimas, por ser essa a única solução que se harmoniza com os fins específicos que justificam a aplicação das sanções, que são de repressão e prevenção.
‘Os fins das sanções aplicáveis por infracções são exclusivamente de prevenção especial e geral, pelo efeito ressocializador ou a ameaça da sanção levar o infractor a alterar o seu comportamento futuro e conseguir que outras pessoas se abstenham, em face da ameaça da sanção, de praticar factos idênticos aos por ele praticados.
Por isso, a aplicação de sanção a pessoa a quem não pode ser imputada responsabilidade pela sua prática não é necessária para satisfação dos fins que a previsão de sanções tem em vista e, por isso, é constitucionalmente proibida a sua aplicação por força do art. 18º, nº2, do CRP que estabelece o princípio nuclear da necessidade de qualquer restrição de direitos fundamentais.’
Por outro lado, porque os revertidos não intervêm no processo de contra ordenação e não têm qualquer possibilidade de contraditar os elementos trazidos pela acusação ou de impugnar ou recorrer do acto de aplicação de coima», acrescentando nós, desde logo por falta de legitimidade processual por não ter sido o sujeito passivo da contra ordenação e da aplicação da coima, «a mencionada interpretação é violadora dos direitos de audiência e de defesa que a constituição estabelece no art. 32º, nº10.»
É por conseguinte com estes contornos que aderimos à fundamentação do citado Acórdão do STA de 16/12/09 (processo 01074/09) e tal como nele se diz: ‘a responsabilização subsidiária dos administradores e gerentes pelo pagamento de coimas previstas no art. 8º do RGIT e que a A.F. tem vindo a concretizar através do mecanismo da reversão da execução fiscal, se reconduz a uma transmissão para outrem de dever de cumprimento da sanção que constitui a dívida exequenda, e que tal acarreta as mencionadas inconstitucionalidades, inviabilizadoras da aplicação do preceito.’
Concluímos, pois, como no citado aresto que a norma ínsita no artigo 8º do RGIT, quando interpretada no sentido de quer consagra uma responsabilização subsidiária pelas coimas que se efectiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora, viola o princípio da intransmissibilidade das penas, por essa reversão implicar, necessariamente, a transmissão da obrigação de cumprimento da sanção que constitui a dívida exequenda.
Deste modo, este tribunal considera a norma do artigo 8º do RGIT inconstitucional quando interpretada no sentido acima exposto».”
3. Tendo havido lugar, nesse aresto, à recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da norma do artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e, no seguimento do processo, apresentou alegações em que concluiu do seguinte modo:
“A norma do artigo 8º, nº 1, alíneas a) e b) do RGIT, quando interpretada no sentido que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão de execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora, não viola os artigos 30º, nº 3 e 32º nº 2, da Constituição”
4. O recorrido defendeu a manutenção do julgado.
5. Por despacho da anterior relatora, já depois de terem sido produzidas alegações e contra-alegações, o recorrente e o recorrido foram notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade de vir a ser proferida decisão de não conhecimento do objecto do recurso, com fundamento na falta de utilidade do mesmo.
6. O Ministério Público veio dizer, concluindo, o seguinte:
“ (…) 11.º Pelo exposto, entendemos que, respeitando-se o sentido e a fundamentação da decisão recorrida, não poderemos concluir pela inutilidade do conhecimento do objecto do recurso, devendo, pois, em nossa opinião, conhecer-se do seu mérito.”
7. O recorrido respondeu, afirmando que “pela forma como está tomada a decisão recorrida do TAF de Coimbra a eventual decisão de considerar constitucional o citado nº 1 do artigo 8º do RGIT não produziria efeitos sobre este processo”.
8. Posteriormente, a anterior relatora apresentou memorando no sentido de considerar a norma constante do artigo 8º nº 1 do RGIT inconstitucional, memorando esse que não viria a ter a maioria de fundamentação necessária, com vista a essa declaração, razão pela qual o processo foi presente ao ora relator para prosseguir os seus trâmites.
II – FundamentaçãoDelimitação do objecto do recurso
9. Como resulta da factualidade tida como assente, foi instaurado processo contra-ordenacional contra a sociedade B., Lda, pela infracção resultante da falta de entrega da declaração periódica do IVA, IRC e coimas, relativa aos anos de 2000 a 2002 e que culminou com a aplicação de coima no valor de € 6.971,58.
Posteriormente foi instaurado processo de execução fiscal para cobrança coerciva da coima, o qual reverteu contra A., enquanto responsável subsidiário.
Não se alcança, no entanto, do contexto da decisão recorrida, a que título foi imputada ao interessado a responsabilidade subsidiária, sendo que a declaração de inconstitucionalidade emitida pelo tribunal recorrido é reportada genericamente à norma do artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
O recurso encontra-se, em todo o caso, circunscrito ao n.º 1 desse artigo, em resultado da restrição tacitamente efectuada nas conclusões da alegação do recorrente, pelo que é nesses termos que deve considerar-se delimitado o seu objecto, sendo de afirmar que o aludido objecto incide sobre a norma do artigo 8º, nº 1, do RGIT, quando interpretada no sentido que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão de execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora.
Quanto ao mérito do recurso
10. O tribunal recorrido considerou, na linha de anterior jurisprudência, que a atribuição de responsabilidade subsidiária a administradores, gerentes e outras pessoas com funções de administração em sociedades, por dívida resultante de não pagamento de coima fiscal em que a pessoa colectiva tenha sido condenada, com a consequente reversão da respectiva execução fiscal, em consequência do que dispõe, nessa matéria o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, é susceptível de violar o princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República, e, bem assim, o princípio da presunção de inocência do arguido, que decorre do artigo 32.º, n.º 2, princípios que, nesses termos, entende serem aplicáveis mesmo no domínio do ilícito contra-ordenacional.
O preceito em análise, inserido nas disposições comuns do Regime Geral das Infracções Tributárias, sob a epígrafe “Responsabilidade civil pelas multas e coimas”, dispõe o seguinte:
“1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento. […]”.
11. Conforme se referiu no Acórdão n.º 129/09, que tratou de idêntica questão, no que se refere á violação dos parâmetros constitucionais, ora invocados, e que veio, posteriormente a ser seguido pelo Acórdão nº 150/2009, (em sentido contrário, vide Acórdão n.º 481/2010), todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt :
“O que a norma, por conseguinte, prevê é uma forma de responsabilidade civil, que recai sobre administradores e gerentes, relativamente a multas ou coimas em que tenha sido condenada a sociedade ou pessoa colectiva, cujo não pagamento lhes seja imputável ou resulte de insuficiência de património da devedora que lhes seja atribuída a título de culpa.
Note-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de emitir um juízo de não inconstitucionalidade em relação a um idêntico efeito de responsabilidade subsidiária que resulta da norma do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, que igualmente prevê que os direitos e obrigações das sociedades extintas por incorporação ou por fusão se transmitam para a sociedade incorporante ou a nova sociedade.
Esse juízo assentou, no entanto, essencialmente, no entendimento de que, nesses casos, só formalmente se verifica uma transmissão, visto que não há lugar à liquidação ou dissolução das sociedades incorporadas, antes se regista o aproveitamento, no seio da sociedade incorporante, dos elementos pessoais, patrimoniais e imateriais da sociedade extinta, o que conduz à inaplicabilidade, nessa situação, da proibição da transmissibilidade das penas constante do artigo 30º, n.º 3, ainda que estejam em causa obrigações decorrentes de responsabilidade contra-ordenacional (cfr. os acórdãos n.ºs 153/04, de 16 de Março, 160/04, de 17 de Março, 161/04, de 17 de Março, 200/04, de 24 de Março, e 588/05, de 2 de Novembro).
Alguns desses arestos não deixaram, todavia, de enquadrar a questão da intransmissibilidade das penas, em termos que mantêm plena validade para o caso dos autos.
No acórdão n.º 160/04, por exemplo, considerou-se o seguinte:
‘A evolução do texto constitucional – que anteriormente previa a insusceptibilidade de transmissão de ‘penas’ [e agora prevê que ‘A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão’] – não se ficou, porém, a dever a qualquer intenção de transcender o domínio do direito penal (como, aliás, resulta claramente também da nova redacção), mas sim evitar que o princípio da intransmissibilidade se confinasse às situações em que a decisão de aplicação da lei penal transitara em julgado, sobrevindo apenas na fase da aplicação da pena.
Ora, não obstante a doutrina e a jurisprudência constitucionais irem no sentido da aplicação, no domínio contra-ordenacional, do essencial dos princípios e normas constitucionais em matéria penal, não deixa de se admitir, como se escreveu no citado acórdão n.º 50/03, a ‘diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contra-ordenações’. Diferença, esta, que cobra expressão, designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que aplica as sanções contra-ordenacionais (como se decidiu no acórdão n.º 158/92, publicado no DR, II Série, de 2 de Setembro de 1992) e na diferente natureza e regime de um e outro ordenamento sancionatório (cfr. v. g. acórdãos n.ºs 245/00 e 547/01, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 3 de Novembro de 2000 e de 9 de Novembro de 2001).
Nestes termos, a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal, não tem de implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa.
Nem sequer se pode, pois, a partir da referida norma, obter um padrão constitucional previsto a partir do qual se pudesse censurar o referido entendimento do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Não o impõe, também, o artigo 30º da Constituição, referido aos ‘Limites das penas e medidas de segurança’; não o impõe o artigo 32º, n.º 10, da Constituição, que estende apenas os direitos de audiência e defesa do arguido aos processos de contra-ordenação e a quaisquer outros processos sancionatórios; e não o impõe a lógica de tutela do arguido que justificou a jurisprudência constitucional em matérias como o princípio da legalidade, ou a aplicação da lei mais favorável (v.g., acórdãos n.ºs 227/92 e 547/01, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 12 de Setembro de 1992 e de 15 de Julho de 2001).
Mais do que verificar a desconformidade de um certo sentido da norma impugnada em relação ao parâmetro invocado, conclui-se, pois, pela inexistência do pretendido parâmetro, aplicável para o efeito pretendido.’
O referido aresto, embora centrado ainda na sobredita questão da transmissão de responsabilidade por incorporação ou fusão de sociedades, não deixa de fornecer elementos decisivos para a interpretação da norma do artigo 30º, n.º 3, da Constituição, salientando que ela não pode servir de parâmetro uniforme para a responsabilidade penal e a responsabilidade contra-ordenacional.
Procurando decifrar o sentido e alcance da norma, também Gomes Canotilho e Vital Moreira salientam que a insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal está associada ao princípio da pessoalidade, daí resultando como principais efeitos: (a) a extinção da pena (qualquer que ela seja) e do procedimento criminal com a morte do agente; (b) a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros; (c) a impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas. O que, em todo o caso, não obsta – como acrescentam os mesmos autores - à transmissibilidade de certos efeitos patrimoniais conexos das penas, como, por exemplo, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime, nos termos da lei civil (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pág. 504)).
No caso vertente, importa ter em consideração, antes de mais, que não estamos perante uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou tão pouco de transmissão de responsabilidade contra-ordenacional.
O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa colectiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
A simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contra-ordenacional.
Por outro lado, o facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma responsabilidade subsidiária, e não constitui, em si, qualquer indício de que ocorre, no caso, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de contra-ordenação (cfr. artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Acresce que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infracção contra-ordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal.
É esse facto, de carácter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
Tudo leva, por conseguinte, a considerar que não existe, na previsão da norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contra-ordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é liquido - que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contra-ordenações.
Concluindo-se, como se concluiu, que a norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT não pode entender-se como consagrando uma modalidade de transmissão para gerentes ou administradores da coima aplicada à pessoa colectiva, facilmente se compreende que esse dispositivo não pode também pôr em causa o princípio da presunção da inocência do arguido, a que o tribunal recorrido também fez apelo para declarar a inconstitucionalidade do preceito.
Na verdade, o artigo 32º, n.º 2, da Constituição, ao estipular no seu primeiro segmento que ‘[t]odo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação’, estabelece um princípio da constituição processual criminal que assenta essencialmente na ideia de que o processo deve assegurar ao arguido todas as garantias práticas de defesa até vir a ser julgado publicamente culpado por sentença definitiva (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 355).
Ainda que se aceite que este princípio tem também aplicação no âmbito dos processos de contra-ordenação, como refracção da garantia dos direitos de audiência e de defesa do arguido, que é tornada extensiva a essa forma de processo pelo artigo 32º, n.º 10, da Constituição, o certo é que, no caso, conforme já se esclareceu, não estamos perante uma imputação a terceiro de uma infracção contra-ordenacional relativamente à qual este não tenha tido oportunidade de se defender, mas perante uma mera responsabilidade civil subsidiária que resulta de um facto ilícito e culposo que se não confunde com o facto típico a que corresponde a aplicação da coima.”
12. Incisivamente, refere Germano Marques da Silva, (in “Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e representantes”, Verbo, pag. 443, nota) “Trata-se de um caso de um caso de responsabilidade civil por facto próprio, facto culposo causador do não pagamento pelo ente colectivo da dívida que onerava o seu património, quer porque por culpa sua o património da pessoa colectiva se tornou insuficiente para o pagamento, quer porque também por culpa sua o pagamento não foi efectuado quando devia, tornando-se depois impossível”.
E acrescenta; “A responsabilidade civil pelo pagamento da multa penal nada tem a ver com os fins das penas criminais, porque a sua causa não é a prática do crime, mas a colocação culposa da sociedade numa situação de impossibilidade de cumprimento de uma obrigação tributária. É evidente que para a responsabilização do administrador é necessário que a sentença dê por verificados os pressupostos da responsabilidade e a respectiva condenação”. E, para assim ser, naturalmente que para se darem como provados os requisitos que venham a estabelecer a obrigação de indemnizar, necessário se torna que sobre essa factualidade tenha incidido o indispensável contraditório.
Sendo certo que “o facto de a responsabilidade do administrador ser subsidiária é relevante porque só após a excussão dos bens do devedor originário a responsabilidade incide sobre o devedor subsidiário, além de que é necessário que se verifiquem os pressupostos exigidos por lei para a reversão” (“ibidem”, pag. 447).
13. Se se proceder à comparação do regime da responsabilidade civil emergente do artigo 24º da LGT (responsabilidade civil do administrador pelo não pagamento do imposto) com o regime da responsabilidade pelo não pagamento das coimas estabelecido pelo artigo 8º do RGIT, sobressai como nítida consequência que estas disposições legais são corolário do artigo 78º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais.
Trata-se aqui, sobremaneira, de responsabilidade delitual pelos danos causados pelo incumprimento das dívidas da sociedade perante os credores sociais em virtude de por facto culposo do administrador o património social se tornar insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
Com efeito, a ratio do artigo 78º, nº 1, consiste em facultar aos credores uma garantia legal pessoal do pagamento dos seus créditos para com a sociedade, impondo essa obrigação de garantia aos membros dos órgãos sociais a título de sanção aquiliana pela violação com culpa das normas de protecção dos credores. Assim, a responsabilidade em apreço não abrange todos e quaisquer prejuízos que os credores possam sofrer, mas sim e apenas os inerentes à falta de pagamento das dívidas respectivas (Cfr. Miguel Pupo Correia, in “Direito Comercial, Direito da Empresa”, 9ª ed., pag. 275).
Não há, por isso, razões para manter o entendimento sufragado pelo tribunal recorrido quanto à questão de constitucionalidade.
III. Decisão14. Termos em se decide:
a) não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, quando interpretada no sentido que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão de execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o juízo de constitucionalidade formulado.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes (vencida quanto ao conhecimento do objecto do recurso e quanto ao fundo, nos termos da declaração que se junta) – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido: Teria decidido não conhecer do objecto do recurso; conhecendo do seu objecto, entendo que a norma é inconstitucional por violar o princípio da proporcionalidade. – Rui Manuel Moura Ramos. Vencido nos termos da declaração de voto aposta aos acórdãos n.º s 24/11 e 26/11.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Pronunciei-me no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, uma vez que um eventual juízo de não inconstitucionalidade da norma cuja apreciação foi requerida nenhuma virtualidade teria de alterar a decisão recorrida.
Na fiscalização concreta da constitucionalidade de normas (artigos 280.º da Constituição da República Portuguesa e 69.º e ss. da LTC) – diferentemente do que sucede na fiscalização abstracta (artigos 281.º da Constituição e 62.º da LTC) “tudo se reconduz a um «recurso», que, embora limitado à questão de constitucionalidade (ou equiparada), não chega a autonomizar-se inteiramente do processo (civil, criminal, administrativo, etc.), em que se enxerta” (Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, Almedina, 2007, p. 66). Daí que o Tribunal Constitucional tenha vindo a entender, em consequência do carácter instrumental da fiscalização concreta da constitucionalidade das normas, que a utilidade do recurso interposto – ou seja, a susceptibilidade de repercussão na decisão recorrida do julgamento da questão de constitucionalidade – surge como condição do seu conhecimento (assim. Acórdãos n.ºs 169/92, 366/96, 463/94, 420/2001, 634/2003 e 687/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. Neste mesmo sentido. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional. Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição, tomo VI, Coimbra Editora. 2001, p. 207 e s.).
Averiguando, nos presentes autos, se o julgamento da questão de constitucionalidade posta é susceptível de ser repercutir na decisão recorrida, é de concluir que, ainda que o Tribunal Constitucional viesse a concluir pela conformidade constitucional da norma extraída do artigo 8.º, n.º 1, do RGIT, manter-se-ia inalterada a decisão de declarar extinta a execução por coimas.
Tendo em conta a matéria de facto dada como provada e não provada, o tribunal recorrido teria decidido no sentido da declaração de extinção da execução por coimas, caso não tivesse recusado a aplicação da norma que é objecto do presente recurso. Sem entrar no “enquadramento jurídico-fiscal da factualidade descrita”, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra deu como provado que “que embora o arguido fosse em 1999 um dos gerentes da sociedade, não exercia de facto essa gerência, trabalhando antes como pedreiro, não pagando salários e não retendo contribuições, antes se tendo alheado da gestão da sociedade arguida”; e como não provado que o “oponente praticou actos de dissipação do património da sociedade executada”, que “de forma reiterada praticou actos que obrigavam a sociedade” e que assumiu comportamentalmente uma atitude de gestão da actividade”. Por outro lado, enquadrando do ponto de vista, jurídico-fiscal a factualidade descrita, o tribunal recorrido concluiu pelo afastamento da responsabilidade subsidiária por dívidas fiscais, face ao disposto no n.º 1, alíneas a) e b), do artigo 24.º da LGT, designadamente por esta norma pressupor – tal como o artigo 8.º, n.º 1, do RGIT – a culpa do gerente no que se refere à insuficiência patrimonial da pessoa colectiva para “solver os seus compromissos”.
2. Entendi também que a norma ínsita no artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), “quando interpretada no sentido de que consagra uma responsabilidade subsidiária pelas coimas que se efectiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora”, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade que se extrai do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Acompanhando o entendimento de que a proibição constitucional de transmissão da responsabilidade penal (artigo 30.º, n.º 3, da Constituição) não se estende à responsabilidade contraordenacional (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 129/2009, 150/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), considero, no entanto, que a norma que é objecto do presente recurso não prevê uma forma de responsabilidade civil, acompanhando, neste ponto, o Acórdão n.º 481/2010 (disponível no mesmo sítio).
A norma que é objecto do presente recurso sujeita os gerentes ou administradores a uma coima fixa, obstando a uma determinação da medida da sanção em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa e da situação económica do agente, o que significa que permite a sujeição a uma coima desproporcionada. Maria João Antunes.